Selo postal 150 anos da lei do ventre livre: uma reflexão sobre história, memória e arte

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A última quinta-feira (21 de Outubro de 2021) foi marcada por evento virtual de lançamento do selo postal 150 anos da Lei do Ventre Livre, organizado pelo Museu Afro Brasil e tendo os Correios, o artista Diego Mouro e o curador de arte Claudinei Roberto da Silva como convidados. Tendo como ponto de partida o bloco postal concebido por Diego Mouro, foi feita uma discussão e reflexões sobre a representação da memória e identidades afro-brasileiras e demais temas históricos na arte e em mídias de grande circulação, como o selo postal. A Live se encontra gravada no canal de Youtube do Museu Afro Brasil.

Os selos servem para mostrar, desde muito tempo, por meio de imagens que circulam o mundo em cartas (mas atualmente também pela internet e outras mídias, como livros) aquilo considerado oficialmente, ou seja, por parte do Estado, a “identidade nacional”. Esta identidade vai sendo construída de acordo com o ambiente social, político e cultural de cada época. Quando os selos postais surgiram, em 1840 na Inglaterra, logo veicularam mensagens daquilo que os países emissores consideravam relevante de sua cultura para ser circulado no restante do mundo. O século XIX é, por excelência, o período da construção/invenção das nacionalidades, devido a necessidade de dar coesão a diversos recém-criados territórios nacionais. Assim, é neste momento que se inicia, em diversos países, a construção dos heróis da pátria e da história nacional.

O Brasil passou por este processo com o advento da Independência. A partir de 1822, os agentes do Estado se preocuparam em identificar as principais características do “povo brasileiro”. Nesse contexto, os selos postais foram muitas vezes utilizados para construir uma determinada versão da história nacional, voltada sobretudo para exaltar os grandes homens responsáveis por construir a nação. Este movimento, iniciado no período imperial, pela criação de instituições como o IHGB e historiadores como Francisco de Adolfo Vanhagen, ganhou maior corpo após a proclamação da república.



Inicialmente, os selos postais brasileiros não faziam qualquer referência a esta questão da construção dos símbolos nacionais. Os olhos-de-boi, como ficaram conhecidos os primeiros selos brasileiros, traziam em sua imagem somente o valor do porte. Este padrão foi seguido por emissões posteriores, como os inclinados.

Somente em 1866 selos portando a imagem de D. Pedro II passam a circular, e assim a cumprir o papel de construir o sentimento de união e coesão nacional a partir da figura do monarca. Nesse sentido, os selos do período imperial não são marcados pela exaltação de personalidades variadas nem são responsáveis por criar simbolismos atrelados a datas.

No período republicano se inicia uma maior variedade de motivos, tanto de personalidades quanto de datas, sempre ligados à história oficial que então se pretendia escrever naquele momento. Um grande exemplo disso é a série “alegorias republicanas”, de 1906, na qual se pode contemplar a face de diversos homens, sempre ligados à política e questões de Estado, então considerados relevantes para a história do país e, principalmente, para a implantação da república brasileira. Estas emissões, portando homens brancos e de elite, estava de acordo com uma perspectiva eurocêntrica daquilo que se considerava os “heróis da nação”, e da imagem de país que o Brasil então buscava projetar para o resto do mundo.

História, memória e esquecimento nos selos postais

A história da representação nos selos postais é também uma história de esquecimento. Pois, entre a construção de uma história nacional e a exaltação de grandes homens, o tom era o de uma narrativa eurocêntrica e branca, não havendo espaço para o reconhecimento da população negra, que então já conformava a maioria em números do país, mas, devido às heranças sociais da escravidão, tinha dificuldade de acesso a direitos básicos de cidadania (SOUZA, 2013). Em um primeiro momento, na época imperial, a representação de personalidades negras não ocorreu, mesmo porque este era um período, conforme comentado anteriormente, na qual havia pouco espaço para pessoas e efemérides, sendo a exceção D. Pedro II. É a partir da República que selos postais retratando afro-brasileiros surgem, mas sempre perdendo espaço para indivíduos brancos considerados, na mentalidade da época, mais “representativas”.

Entretanto, este primeiro período republicano do país abriu frestas que permitiram contemplar afro-descendentes de destaque em áreas específicas da vida nacional, como a música e a literatura. A primeira homenagem feita a uma personalidade negra foi no centenário de Carlos Gomes, em 1936, seguido pelos 100 anos de Machado de Assis, em 1939. Estes indivíduos, vale destacar, foram motivo de selos postais em outros anos, sendo temática recorrente no panteão de homenagens dos selos postais.

Embora desde os anos 1930, pessoas, elementos e datas relacionadas à cultura afro-brasileira sejam destacados em diversos selos, é preciso ter ideia da efetividade numérica da representação do assunto. De acordo com a monografia de Sara Ramos Figueiredo, Lembrança e esquecimento: Representação da Identidade Negra no Acervo Filatélico do Museu Correios, dos 11.500 selos brasileiros lançados entre 1843 e 2013, apenas 230 tratavam da cultura afro-brasileira, ou seja, apenas 2% do total (FIGUEIREDO, 2013). A partir deste dado levantado pela autora, vemos a urgência e necessidade de representação da sociedade e da história(s) negra(s) por esta mídia oficial, responsável por divulgar e construir conhecimento histórico para um amplo público. Figueiredo também chama a atenção para o fato de estes selos pouquíssimas vezes terem sido produzidos por artistas afro-descendentes e, assim, servirem como um meio de representação de e para a população negra de suas histórias, memórias e identidades.

Selos postais e lutas políticas

Em 1971, após um protesto nas ruas, o dia 20 de novembro, data da morte de Zumbi dos Palmares, foi escolhido como o Dia da Consciência Negra. O objetivo era chamar a atenção para as desigualdades que ainda hoje persistem, bem como solicitar por melhores condições de vida para a população afrodescendente. Zumbi dos Palmares, líder quilombola morto em 1695, foi escolhido como símbolo do movimento. Utilizou-se, assim, da releitura de uma figura histórica para reivindicar questões do presente.

As ações e organizações da sociedade civil que promoveram o debate acerca da cultura afro-brasileira e a necessidade de seu reconhecimento e destaque tiveram repercussões algum tempo depois na esfera governamental. Em 1997, Zumbi dos Palmares foi incluído no livro de Aço dos Heróis e Heroínas Nacionais. Em 2003, a lei 10.693 colocou a obrigatoriedade do ensino de História da África e cultura afro-brasileira nas escolas. Esta mesma legislação indica que o Dia Nacional da Consciência Negra deve fazer parte do calendário escolar. Como consequência desta passagem da reivindicação da sociedade civil e do surgimento de políticas públicas, encontramos a referência a Zumbi nas mídias oficiais, e o selo postal foi um desses meios de validação da imagem do quilombola.



Paralelamente, neste período entre os anos 1970 e a primeira década dos anos 2000 alguns selos postais são responsáveis por destacar a luta e as conquistas políticas dos movimentos sociais negros.

A Lei do Ventre Livre em selos Postais

Diferentemente do dia 13 de maio (abolição), o 28 de setembro (Lei do Ventre Livre) não parece ter recebido tanto destaque na construção oficial de eventos celebratórios e liturgias públicas. Contudo, esta data possui grande tradição de comemoração nos selos postais brasileiros. Ela é marcada, inclusive, nos primeiros selos comemorativos do país, lançados em 1900.

Ao observar o exemplar da temática “abolição”, é possível perceber, nos cantos da gravura, duas datas: 28 de setembro de 1871 e 13 de maio de 1888. Ou seja, o selo passa a ideia de que o processo de extinção da escravidão, culminado na Lei Áurea, foi iniciado anteriormente, especificamente no momento da Lei do Ventre Livre. Tem-se, assim, a partir deste selo, a ideia de uma história linear que, por parte de ações contínuas Estado, resultou na liberdade de todos os escravos.

Como se sabe, o período anterior à abolição foi bastante complexo, havendo inúmeras correntes de pensamento de como a liberdade deveria ocorrer. Em um primeiro momento, o movimento abolicionista, inclusive a partir de sua representação política no parlamento por meio dos liberais, foi marcado por ideais de emancipação gradual. Portanto, a libertação do ventre de escravas foi o grande mote desta vertente, a qual previa a libertação de maneira lenta, e com compensações às perdas financeiras dos senhores (DOLHNIKOFF, 2020, p.117-121).

Após 1871, o movimento abolicionista radicaliza-se. Isso se deu por inúmeros fatores, que envolvem desde o grande crescimento de revoltas escravas com o objetivo claro de luta pela liberdade, a maior adesão social ao movimento e, também, a percepção das falhas da Lei do Ventre Livre. Sobre esta última questão, a medida legal passou a ser criticada devido ao seu processo moroso para a real liberdade bem como pelas inúmeras compensações dadas aos senhores. Assim, a ineficácia desta lei levou os abolicionistas a pressionarem, cada vez mais, por emancipação imediata, a ser acompanhada de medidas de inserção dos ex-cativos na sociedade civil (DOLHNIKOFF, 2020, p.121-128-121).

Portanto, 28 de setembro e 13 de maio representam momentos diferentes do abolicionismo e não podem ser entendidos enquanto uma cadeia gradual de acontecimentos. A imagem do selo, contudo, não permite entrever estes debates e mudanças de percurso, por ser fruto de um ideal de história específico do século XIX, de perspectiva linear e evolucionista.

A outra referência filatélica a esta data diz respeito ao centenário, em 1971. Para além do selo, este ano foi marcado por alguns acontecimentos de rememoração da dia. Destaca-se o evento organizado pelo CEAO (Centro de Estudos Afro-Orientais, da UFBA), justamente para marcar a data, sendo que um dos produtos destes encontros foi um texto de Edson Carneiro sobre as discussões parlamentares sobre a lei do ventre livre e os diferentes movimentos políticos da época, tanto emancipacionistas quanto abolicionistas (CARNEIRO, 1971, p.13-25).

Já o selo postal de 1971 reproduz um quadro de Lucílio Albuquerque, de 1912, chamado “Mãe Preta” e atualmente parte do acervo do Museu de Arte da Bahia. Pouco se sabe sobre o objetivo da escolha desta obra para uma emissão postal acerca dos 150 anos da Lei do Ventre Livre, pois não foram localizados documentos que permitam entender as motivações dos agentes de correio da época que trabalharam diretamente com esta emissão. Contudo, é possível contextualizar acerca do período da produção da obra. Politicamente, o Brasil passava pela experiência da primeira república, em uma conjuntura bastante recente de fim da escravidão e no qual os afro-brasileiros passavam por inúmeras dificuldades de inserção na sociedade civil devido às heranças do passado escravocrata.

Muitos ex-escravos continuaram desempenhando os mesmos trabalhos anteriores, inclusive permanecendo das terras dos senhores. No caso específico das mulheres negras, a função de ama de leite passou a ser uma das possibilidades de trabalho livre remunerado, mas que fazia parte de um longo histórico de trabalho doméstico escravo. No caso da figura feminina representada na obra de Lucílio de Albuquerque, o que vemos provavelmente é uma mulher negra livre, desempenhando o trabalho de ama de leite. O que revela a condição de liberdade é o fato de ela estar acompanhada de seu filho, algo que não ocorria com as mulheres escravizadas, pois eram separadas de seus filhos no momento do nascimento. Lucílio representou, portanto, uma realidade e uma condição da população negra feminina de sua época, algo comum e uma cena provavelmente vista por ele em seu dia-a-dia (DUME, 2018).

Este momento da primeira república também era marcado pelos discursos raciais então proferido por políticos, cientistas, médicos, dentre outros. De maneira racista, falava-se então sobre a suposta “necessidade” do branqueamento da população brasileira para se alcançar determinado patamar civilizatório. O próprio artista, ao falar do “tipo” brasileiro, colocou que este idealmente seria o “moreno” e não o negro africano (NOGUEIRA, 2016, p.115). A reprodução desta obra em selo postal nos anos 1970 deve sempre levar em consideração o contexto de sua criação e como isso se atrelava às questões acerca do racismo discutidas no momento presente.



O bloco 150 anos da lei do ventre livre

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O projeto deste bloco postal surgiu de uma vontade da equipe de filatelia dos Correios de tratar os temas históricos em selos postais de forma atualizada, a partir do diálogo com a historiografia sobre o tema, e, também com os movimentos sociais de maneira mais ampla. Por isso, foi feito contato com o Museu Afro Brasil convidando-os para serem parceiros nesta emissão. A ideia, a partir do contato com o Museu, era trazer para a produção do selo um artista negro que tivesse o foco de seu trabalho acerca da interpretação da memória e construção das identidades afro-brasileiras. E assim, pela indicação do Museu Afro Brasil, foi feito o convite a Diego Mouro. Em diálogo com o artista, foi colocado que o selo deveria servir como ponto de reflexão e debate acerca da data e quais seus significados na atualidade.

Diego Mouro criou uma arte que permite conectar passado e presente. A partir da data da lei do ventre livre, podemos refletir criticamente sobre o que significa ser livre hoje para a população afro-brasileira, se é que é de fato uma possibilidade.  A leveza das crianças brincando e das roupas no varal é contrastada por uma sombra, que representam as constantes ameaças as vidas negras, ainda são bastante graves no Brasil atual. Seja por meio de cartas, pela internet ou por livros didáticos, estes selos cumprirão um papel cultural e pedagógico de construção do pensamento crítico e de significados sobre o passado.

Referências bibliográficas

CARNEIRO, Edson. A Lei do Ventre Livre. Afro-Ásia, [S. l.], n. 13, 1980.

DOLHNIKOFF, Miriam. História do Brasil Império. São Paulo: Contexto, 2020.

FIGUEIREDO, Sara Ramos. Lembrança e esquecimento: Representação da Identidade Negra no Acervo Filatélico do Museu Correios. Dissertação de Mestrado, Universidade de Brasília, 2013.

NOGUEIRA, Manuela Henrique. Georgina Albuquerque: trabalho, gênero e raça em representação. Dissertação de mestrado. Universidade de São Paulo, 2016.

SOUZA, Daiane. População escrava do Brasil é detalhada em Censo de 1872. Site da Fundação Cultural Palmares, 2013. Disponível em: <https://www.palmares.gov.br/?p=25817>.



Texto originalmente publicado no site Eu amo Filatelia dos Correios do Brasil – https://blog.correios.com.br/filatelia/

André Luiz Padilha

Graduado em direito com especialidade em meios alternativos de soluções de conflito e atualmente é estudante de História. Colecionador de moedas desde 1997 e numismata desde 2011. É um ativo divulgador da numismática nacional publicando diversos artigos e estudos por dezenas de plataformas, presta serviços como avaliador e consultor em pelo menos 9 países, também é o fundador da Numismática Castro, do CNERJ e do canal Café e Numismática. É sócio da American Numismatic Association (ANA)

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